Mergulhar



Lá estava ela outra vez. Perdida nele. Nas suas notas. Havia posto sua música porque desejava escrever sobre tudo o que vinha acontecendo. Sentia-se desesperadamente inspirada e não poderia deixar aquele momento passar. Foi só pôr sua musica e pronto. Ar…. ar… ar… respira, ordena e calma. Era difícil não deixar-se dominar por sua canção. Por seu balé. Principalmente quando suspeitava que talvez dança-la fosse seu maior desejo. Mesmo quando o que a inspirou inicialmente foram palavras. Palavras, notas, sons, vozes, luzes, cores, quadros… São tantas as opções e é tão difícil decidir… Quando se é educada pelo vento, é difícil não deixar-se levar. Mas havia bailado pela primavera e tinha consciência de que precisava semear. Por enquanto, a palavra era sua ferramenta mais precisa e mais alcançável no momento.  Assim que teria que ignorar o vento que vinha daquela canção. Precisaria dela ali para manter o ritmo das batidas. Mas deveria manter a sobriedade ante ela e aproveitar a tela em branco diante de si. Assim que comecemos pela noite anterior… Por algo há de se começar, mesmo quando tudo dança dentro de si… por algo há de se começar.

Estava orgulhosa de si. Por tudo, mas, naquele preciso instante, especialmente por Clarice. Havia dado o passo. Depois de anos de preparo, por fim deu a mão a Joana e voltaria a dar a mão a todos os seus personagens, queria acompanhar a viagem de Clarice. Da nova amiga. Tinham muito em comum.  Queria-lhe bem, mas não desejava ser como ela, porque se identificava com 90% da busca e com 90% do caminho.  Suspeitava que aqueles 10% fariam toda a diferença. Estava orgulhosa de si. Porque havia bailado pelo não, pelo ying e pelo yang e havia dito, por fim, não.  Lembrara-se de como aquelas palavras de Clarice, justo ao início da novela, lhes havia causado impacto “O gosto do mal…” algo fora dela dizia “O mal? Como que o mal? O mal é feio. Isso não faz sentido…” … “O chofer da carruagem.” “O condutor dos cavalos”, diria o maestro. Mas era Clarice quem o dizia! Era quase como se ela mesma o houvesse dito – quando lia Clarice, sentia como se a maioria daquelas palavras estivessem dentro dela mesma, só esperando para serem lidas -. Não poderia ignorá-lo, mesmo porque, intimamente, se sentia estranhamente atraída por aquelas palavras. As leu uma e outra vez, procurou justificativa (lá no fundo as procurou, mesmo que envergonhada de sua hipocrisia, as procurou) e não havia.  No fundo, não eram as razões católicas, compassivas, bondosas… etc e tal… o que a impediam de ver. (Ou talvez sim, ainda não sabia calcular a influencia destas nela, tudo era tão novo, e, ao mesmo tempo, sempre estivera ali…) Não. Não era o medo do pecado, da desaprovação divina ou social, nem a desaprovação do seu próprio ser. Eram outras razões as que a puxavam para o lado do rechaço àquelas palavras. Enquanto algo, dentro de si, a puxava ao convite.  “O passageiro dentro da carruagem” diria o maestro.
Era uma questão meramente estética. Alimentava-se de beleza, essa era uma questão a se ter em conta, pois havia aprendido a ver beleza na “bondade”, e bondade aqui tem um sentido muito maior que mera compaixão. Era a bondade do sorriso, da alegria, das saias rodadas, do vento, das cores… Aquilo que provocava brilho em tudo e nela. Retroalimentação. A bondade estética. Aceitar aquelas palavras requeria a assimilação de uma nova aprendizagem estética.  Sabia que eram belas, mas precisava saber o porquê.  Esse era o outro “x” da questão. Teria que ser humilde para aceitar que, por fim, haviam chegado palavras de Clarice que ela, em um primeiro momento, não podia compreender de todo.  Primeiro o rechaço, depois a curiosidade, logo a humildade, a aceitação, a abertura, a aprendizagem e, por fim, a compreensão. Ainda que esta ultima demorou alguns dias para sair do casulo.  Como tudo nela. Mares que navegam sob a terra por muito tempo e, um dia, por fim, saem à superfície. Esse era outro motivo de orgulho. O novo casulo. Nunca antes havia tido uma consciência tão plena de estar criando asas.  Desde que começara a bailar a vida de uma forma mais didática, as compreensões tinham ganhado um catalizador. Tudo era mais rápido e, no entanto, ela nunca se havia visto tão sábia.
Agora ela estava ali. Uma nova aprendiza da estética do mal. Não é que não a conhecesse.  Para bem dizer a verdade, sempre lhe havia fascinado, secretamente, a sombra. Mas as linguagens eram outras. Transformado em palavras tudo ganha outra dimensão. Já não poderia ocultá-lo no inconsciente. Levava botas e batom vermelhos. Sempre os levara. Quiçá antes fosse como uma criança, que desejava ser médico desde pequenina e, sem compreender plenamente a importância da escolha de uma profissão, ainda assim, levava seu jaleco branco, feliz e orgulhosa da escolha consciente, dentro da absoluta ignorância dos percalços da vida. Uma consciência inconsciente.  Agora era como se seu batom e suas botas, por fim, se houvessem convertido num jaleco profissional. No primeiro ano acadêmico, é bem verdade, mas profissional. Era como uma caloura orgulhosa dos seus primeiros passos universitários.  Tinha consciência disso e pensava que o maestro se dava conta. Perguntava-se frequentemente “O que o chama em mim?”. Havia vivido muito, é verdade, mas não o trazia à superfície. Principalmente porque era momento de um novo casulo. Era momento de sentir-se caloura. O que o chamava então? Talvez ele previsse o que ela estava por descobrir, ou por ter plena consciência. Ou talvez, ele só necessitasse de alguém que o ajudasse a esquecer…  Fosse o que fosse, ela não deixaria de aproveitar. Sabia que ele era uma peça mais daquele momento. O maestro, seus olhos, seu balé, sua música, assim como a janela do quarto, da sala, a dança da vida, a recém-chegada primavera e Clarice… Todos estavam em perfeita harmonia naquele mesmo instante. Uma plateia dentro do bosque. Concentrados ao redor do casulo, esperando e ansiando para que saíssem, por fim, as asas.
Então era assim que ela estava, batom e botas vermelhos, vestido cinza, delineando perfeitamente suas curvas, meia-calça, fina, velha, negra, bonito colar negro e, principalmente, um olhar. Um olhar aprendiz, mas caminhando para um olhar pleno, como o do maestro. Aquela noite escutou um violão, samba de Noel, de Jobim, bebeu vinho, fumou, ouviu orgulhosa citarem Clarice e esteve só. Principalmente esteve só. No meio da multidão e só. Depois de tanto tempo. Por fim, só. “Obrigada, Maestro”. Ainda não sabia como, mas ele a havia influenciado diretamente. Fazia-lhe sentir vontade de sair só. Ver gente só. Sentir-se má e só. Estar aberta, nua e só. E, paradoxalmente, desejava insistentemente estar com ele. Esse era um mistério novo, que estava por solucionar: como poderia alguém inspirar-lhe tanto sua companhia e, ao mesmo tempo, a solidão, ambos quase que com a mesma intensidade?
Citaram Clarice, “dos fatos não há como fugir”. Clichê, fácil, banal… como poucas em Clarice. Mas para quem viveu e compreende, verdade dolorosa.  Nua, sem pretensões. Má. Bela.  Disseram também “Os mistérios, na vida, apresentam-se a nós e nos dizem: leia-me”, foi quando a transportaram diretamente aos olhos do maestro. “Preciso lê-los…” Não! Pensou em seguida, isso era como quando ela olhava os cachos amarelos desde a janela chocarem-se com o azul, com o laranja e todas as luzes e tonalidades. Como quando sentia o vento e as rodas da bicicleta. Como quando mergulhava e mergulhava nas águas cristalinas do porto, quando pequena. Ali compreendia a unidade e a união de tudo, desde cada átomo e, principalmente, de cada elétron.  Há mistérios que residem no mistério, e no mistério devem residir. Não se há de lê-los. Aqueles olhos dizem tudo.
Era difícil suportá-los. Não sabia se por medo ou se por demasiada informação. Recordavam-lhe de quando era pequena, seu pai bebia e insistia em falar-lhe sobre os mistérios do universo, ou dos universos, da formação das ideias e de realidades paralelas. Ela viajava, mergulhava e mergulhava até que não podia suportar. Corria à superfície e respirava. Lembra-se muito, sem saber ao certo se é razão ou não para arrepender-se, do dia em que lhe proibiu de falar desses temas. Fugiu. Não voltou jamais.
Mas agora, são os olhos do maestro. Quanta informação! A água é pura e cristalina, não há o que decifrar, menina! É o que é. Vai lá! Mergulha e mergulha…
Não há amor, não há paixão, não há carinho, não há atração corporal, nem sequer amizade. Um leigo diria que não há nada. Clarice diria que há tudo o que se há de haver. Dois seres. Uns olhos, um mar, e um desejo de mergulhar.
Ela o observa minuciosamente. A boca é só uma boca. Um sorriso com aparelho. Ossos, por todas partes. Diz-se a si “Em que momento de minha vida diria que é feio? Sei que sim… sei que em algum momento de minha história pensaria, é feio. Talvez ontem mesmo. Não sei.” Mas é curiosamente belo… harmônico e belo. Até mesmo em ossos é belo. Foge de toda estética conhecida. Talvez da estética da bondade. Não é nada e é tudo. Fora de pretensões. É rígido e pleno.  Não saberia dizer se as mãos e os pés são grandes, mas quando convidam, convidam. São enormes. Passam por tudo. Um balé. E os olhos…
O sexo é outra questão ainda por compreender-se… Muitas vezes o deseja, mas não por presença, senão por lembrança. Mesmo quando ao seu lado, o deseja por lembrança. Do que foi, do que é, talvez do que será. Essa é outra questão nela ainda por decifrar. Está à caça da verdade oculta nas dimensões do tempo. Mas há um desejo real e, ao mesmo tempo, vago, difícil de definir. O corpo é uma mera ferramenta de mergulho que, uma hora aqui, outra ali, convida. O corpo seria a carruagem? Que diria o maestro? A questão é que não há nada mais que dois seres. Um que oferece um mar, outro que quer mergulhar. Às vezes teme inclusive esquecer a presença dos corpos e perder-se no mistério. Ainda bem que existe a ponta dos dedos… mergulhar… a voz suave… mergulhar… os lábios macios… mergulhar… a língua doce… mergulhar… a pele de coco, de homem, de suor… mergulhar, mergulhar, mergulhar… e, principalmente, olhos.


                                                            Recebido dia 30/03/2014 por email

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